(...) – Não sei se sabe, Nástenka, que há em Petersburgo uns lugarzinhos bem estranhos. Nesses recantos é como se não brilhasse o mesmo sol que arde para toda a gente em Petersburgo, mas outro qualquer, um sol novo, como que encomendado de propósito para esses sítios, um sol que alumia tudo com uma luz diferente. Nesses recantos, querida Nástenka, parece viver-se uma vida muito diferente, nada comparável à vida que ferve ao nosso lado, uma vida talvez só possível no reino dos contos de fadas e não entre nós, nestes nossos tempos sisudos. Essa vida é uma mistura exacta de pura fantasia, de ideal ferveroso e, por outro lado (infelizmente, Nástenka!), qualquer coisa descolorida, prosaica e vulgar, para não dizer: de uma chateza incrível.
- Fu! Meu Deus! Que prefácio! O que irei ouvir a seguir? - Vai ouvir, Nástenka (acho que nunca me hei-de cansar de lhe chamar Nástenka), vai ouvir que nesses recantos moram pessoas muito estranhas: os sonhadores. O sonhador, caso a Nástenka precise de uma definição pormenorizada, não é uma pessoa, mas uma criatura intermédia, se quiser. Instala-se, na maioria dos casos, nalgum recanto inacessível, como se até da luz do dia se escondesse, e, logo que se mete no seu recanto, fica colado a ele como um caracol, ou, pelo menos, fica muito parecido a esse bicho engraçado que é animal e casa ao mesmo tempo e que se chama tartaruga. (...)
(...) No quarto, escurece; na sua alma há um vazio e uma tristeza; todo um reino de devaneios se desmorona à sua volta, rui sem estérpito e sem deixar vestígios, passa como um sonho, um sonho cujo conteúdo esqueceu. Porém, uma sensação obscura, uma dor surda a levantar-se no seu peito, um novo desejo, já lhe titila e excita sedutoramente a fantasia, um imperceptível apelo a toda uma chusma de novos fantasmas. No pequeno quarto reina o silêncio; o retiro solitário e a perguiça afagam a imaginação, que começa a inflamar-se, a fervilhar levemente, como a água na cafeteira da velha Matriona, placidamente atarefada na cozinha ao lado, a preparar o café dela. Eis a imaginação que já irrompe, fulgurante, eis um livro, nas suas mãos por acaso e sem querer, que já cai das mãos do meu sonhador antes de ter chegado à terceira página. A imaginação está outra vez afinada, excitada, e de novo brilham repentinos aos seus olhos um mundo novo e uma vida nova e encantada na sua perspectiva cintilante. Um novo sonho- uma nova felicidade! Uma nova dose de requintado, voluptuoso veneno! Oh, bem lhe interessa a nossa vida real! Para o seu olhar cativado, Nástenka, pessoas como nós vivem de modo perguiçoso, vagaroso, mole; para ele, andamos todos descontentes com o nosso destino, sentimos muito tédio na nossa vida! Mas também, olhe só, à primeira vista tudo entre nós é de facto escuro, frio, como que zangado... «Coitados!»- pensa o meu sonhador. Não admira que pense assim! Olhe para estes fantasmas mágicos que, de modo tão divino, tão caprichoso, tão vasto, tão infinito, formam diante dele um quadro milagroso e cheio de vida, onde em primeiro plano, como personagem principal, está sem dúvida ele mesmo, o nosso sonhador, na sua própria e querida pessoa. Olhe que aventuras mais variadas, que enxame infinito de sonhos enlevados! Vai talvez perguntar: com que sonha ele? Com tudo... (...)
in: Noites Brancas, Fiódor Dostoiévski