As pantufas assassinas


Escrevo-vos à beira da morte, apesar de ainda há dias ter estado ainda mais perto dela. Dela, minha morte e dela minha mãe, já que só assim pude saber que eram sinónimos.
   As mães dão-nos vida; são a vida. Eu já deveria ter desconfiado que também traziam a Morte. Andam ligadas e bem podem tentar extricar- se que não conseguem.
   Freud apenas viu parte da coisa. É verdade que queremos secretamente matar os nossos pais. Mas dar demasiada atenção a esse impulso é fazer esquecer que também as nossas mães nos querem matar, por querermos matar os maridos delas. Aliás, todos nos querem matar - essa é que é essa. É tão certinho como querermos matar toda a gente.
   As mães são do sexo feminino e logo têm uma maneira subtil de matar os filhos, que só compreenderá quem pensar muito no assunto ou, como eu, seja surpreendido por uma tentativa desesperada de assassinato.
   A minha mãe tentou matar-me através de umas pantufas assassinas.
   Conheço bem o meu Sherlock Holmes (A Study in Scarlet); o meu Poirot; a minha Highsmith; a minha Rendell; os meus C.S.I nas várias versões Miami; Las Vegas e Nova Iorque. Mas jamais tinha confrontado forma tão maléfica.
   As mães querem matar-nos para nos poderem salvar de morte certa à última hora. Foi o que me aconteceu. Ia morrendo mas, no último segundo, fui salvo pela minha assassina. Ficou-me a lição: « Dei - te vida; posso matar-te e, se estiver bem disposta, salvar-te.» Acreditem. Elas podem. É melhor não nos armarmos em bons e aceitarmos já.
   Sempre fui um selvagem; um Robinson Crusoé. No fundo, um pé – descalço.
   Odeio meias. Nunca usei chinelos na minha vida. Tenho sempre calor.
   Mas a minha mãe, como assassina paciente, tem esperado pela minha meia-idade. A recente onda de frio ofereceu-lhe a oportunidade porque tanto esperou para me matar.
   Apareceu um dia lá em casa com cinco pares de pantufas com muito bom aspecto. Umas eram de tartans multisseculares, fiéis aos clãs das Terras Altas da Escócia. Mas havia um par muito giro que era camel hair, impecavelmente castanhos-claros, no estilo beduíno de Oscar Wilde e Noel Coward. Vesti-as logo. Eram as primeiras pantufas que calçava e souberam-me bem. Eram fofas e quentinhas. Escusado será dizer que eram as assassinas
   Mandei os outros quatro pares para trás, apesar dos protestos da minha mãe. Se ia deixar de ser pé-descalço, seria, ao menos, um pantufeiro exigente, do Magrebe. Os padrões dos MacDougals e dos MacRamsays nada me dizem – imaginava-me a ter também de usar tinta azul na cara, como no absurdo filme Braveheart em que pontificava Mel Gibson.
   Várias vezes por dia, a minha assassina Mãe telefonava a perguntar se eu tinha as pantufas calçadas. E eu tinha. Habituei- me àquele quentinho.
   Não dava um passo sem elas. Mal sabia eu que estava a expor os meus delicados pés a um dos mais atrozes envenenamentos de que foi capaz o ardil humano…
   Após uma única semana, fui abatido. Os meus pés- conhecidos por serem classicamente gregos - incharam como se tivessem sido insuflados na praia para servirem de bóia promocional. A cor marmórea, de Carrara, que sempre caracterizara os meus pedúnculos, transformou-se num escarlate brilhante que teria servido para assinalar, no mais denso nevoeiro, uma casa de putas de Amsterdão.
   Essas alterações estéticas teriam sido bem aceites - só para poder responder que sim quando a minha Mãe telefonava a saber se tinha os chinelos calçados - não fosse a intensa agonia de que se fizeram acompanhar.
   Tinha ganho uma linha directa aos «autos – da - fé» do Santo Ofício; uma experiência em primeira mão podiatra do que sofreu Joana d’Arc. Os meus pés ardiam como se sofressem um ataque intervalado de pedras de gelo e lança- chamas. Ao consultar os livros médicos, a origem da palavra «inflamação» surgiu diante de mim em toda a sua crueza.
   Deixei, escusado será dizer, de poder andar. Toda a dor de que era capaz o meu cérebro sobre- exercitado estava concentrada nos pés: nos dedos; nas plantas; nas «barrigas»; nos calcanhares; nos tornozelos.
   Estava a morrer queimado.
   Tirei as pantufas assassinas? Nunca! As pantufas que a minha mãe me tinha trazido? Vocês são doidos ou quê? Para mim, se não fossem elas, já eu estaria inteiramente consumido pelas chamas. Suspeitei insuficiências cardíacas; neuropatias complexas; gangrenas diabéticas; excessos de álcool e de mariscos; uma gota apocalíptica que vinha saldar a factura de tanto foie gras
   Contei tudo à mãe assassina que disse, tipicamente, que o mal era frio e que as pantufas não eram suficientemente quentinhas. Por serem abertas atrás, tipo chinelo, deixavam entrar a invernia. «Eu sabia que devia ter comprado pantufas fechadas!», disse ela, culpando-se por ter sido tão pouco séria. «Deixa lá Mãe», disse o prestes- a - ser - assassinado, «ao menos protegem os dedos dos pés e a parte da frente…»
   Quando a agonia atingiu paroxismos de febre e de loucura, senti que faltava pouco. O auto-de-fé já tinha chegado à massa cinzenta e era uma questão de tempo antes de me poder despedir deste mundo e desta vida de que tanto gosto.
   Nesse momento, valeu-me que a minha assassina também era minha Mãe.
   Deve ter tido pena. Era uma morte lenta e dolorosa demais. Afinal, eu também tinha (tido, uma vez) uma qualidade ou outra. E, assim como já uma vez me tinha dado vida e mostrado poder tirar-ma quando quisesse, também poderia devolver-ma, já que eu estava a fazer tanta fita.
   Em meia hora telefonou para dois grandes especialistas – médicos exímios que, apesar de não serem filhos dela, sentem o terror – e deu-me a receita para a salvação. A voz dela não era alegre nem bem-disposta, antes resignada. Tratava-se de uma assassina a quem faltava a qualidade do arrependimento.
   «Apenas transmito o que ambos me disseram, depois de ouvirem os sintomas:», disse a mãe assassina, «isso deve ser uma alergia qualquer». Disse a palavra «alergia» com o devido desprezo, com aquela entoação bem portuguesa de «mas ca ganda mariconço que me saíste…!»
   Ora, as alergias matam e as assassinas sabem disso. Já não chegam ambas as mãos para contar os episódios C.S.I em que as matanças se devem a um único amendoim misturado num caril ou num chop suey.
   A Mãe assassina desligou, insatisfeita com a prestação dos médicos. Mas eu, estando à beira da morte, agarrei-me áquela palavra «alergia». Mas alergia a quê? Que coisa tinha eu começado a comer ou tomar que não tomasse antes? Fiz uma lista. Qual «uma lista»! Várias listas. Todas juntas constituíam a minha vida inteira.
   Fui ler os cartapácios. Num deles, num sidebar, li que era boa ideia tomar nota das mudanças recentes. Mas que mudanças recentes tinha eu feito? Nenhuma. Desiludido, estiquei os pés a ver se doíam um bocadinho menos por mudarem de posição.
   Eu via-as. Vi as putas. Vi, Numa salvífica revelação, as pantufas assassinas. Deixei de ver Oscar Wilde, Noel Coward e Rex harrison. Vi só a Morte. Varreram-se-me as snobices beduínas do camel hair. Vi a cor lívida dos cadáveres quando são autopsiados. Identifiquei finalmente as assassinas.
   Duas escassas horas depois de ter descalçado as pantufas assassinas, os meus pezinhos voltaram a ser atribuíveis a Adónis: que lindos! E a cor? Que olímpica! Que branquinha! Que impoluta! E a dor? Tinha completamente desaparecido.
   Examinei as pantufas assassinas. Descobri, por exemplo, que talvez não tivessem vindo da augusta e caríssima Scotch House de Knightsbridge – que vende belos chinelos de camel hair e de verdadeira caxemira. Até porque tinham escrito, num picotado quase invisível, a palavra «TEXIS» na barriga. E os erros de ortografia são sempre de suspeitar…
   Passei o tecido pela parte mais tenrinha dos meus braços. Ardeu e riscou. Dez segundos depois, estavam inflamados. Tratava-se, sem sombra para dúvidas, de um material assassino. «Sintético» é adjectivo honroso demais para descrever a composição daquele veneno…
   Enquanto ouvia o tom mavioso da voz da minha mãe a impingir-me as pantufas (o que os ingleses chamam dulcet tones), decidi que teria de interrogar a minha amada assassina que à última da hora me tinha salvo.
   Soube durante essa interrogação que a minha mãe, pouco depois da II Guerra, tinha trabalhado numa sapataria e conquistado todas as promoções e todos os prémios que se dão aos melhores vendedores.
   Havia em mim um instinto Tom Sawyer, Huck Finn, pé-descalço, puto da Ribeira ou de Alfama, que rejeitava as pantufas. Mas diante mim erigia-se a torre da civilização inglesa: «Já viste, Miguelito? Este par de chinelos são de puro pêlo de camelo e afeiçoam-se aos pés. São chinelos de chambre, de salão até iguais aos que usavam Saint-Simon, o Marquês de Sade, Oscar Wilde, Noel Coward…»
   Deveria ter sido alertado pela referência sádica mas, snob que sou, deixei-me levar. «Não viste o My Fair Lady?» Eu aí ainda disse que Rex Harrison jamais usaria umas pantufas daquelas. Mas a minha mãe fez um ar beatífico e disse logo: «Tu és meio- português e é natural que confundas as coisas. Não é Rex Harrrison que importa. É o amigo Wilfred Hyde-White . Esse, sim, tem gosto. E ele tinha um slippers idênticos para a hora dos coquetéis, evidentemente.»
   Se calhar, fui induzido a colaborar no meu assassinato por causa dessa menção dos coquetéis. Depois, na descrição do pêlo, a minha Mãe fez questão de mencionar que era cruel como escolhiam os camelos ainda bebés para fabricar as pantufas – mas que era um «fait accompli» como tantos outros. «Sabe-se lá quantos camelos foram mortos para o teu pai ter aquele sobretudo de que tanto gostava…tu, ao usares estes chinelos, tens a consolação que não foi um sequer…»
   Palavra, só faltou dizer «Não faças com que aquele camelo bebezinho, que tanta falta teria feito a um nobre guerreiro beduíno, tenha morrido em vão…» Calcei logo as pantufas assassinas, condenando os meus pés não só à morte como à iniciativa de matar lentamente o resto da minha pessoa.
   Daí que o «ditado» pela boca morre o peixe» seja tão pouco convincente.
   Geralmente é pelos ouvidos – e pelos pés – que morremos.
   Sabendo-me vítima de assassinato, fui impiedoso com a assassina e ela lá confessou: aquelas pantufas tinham tanto de camelo como eu (quer dizer…). Na verdade, os cinco pares com que apareceu cá em casa, tinham sido comprados não tanto no bairro mais chique de Londres como, mais concretamente, no Carrefour de Telheiras. Durante os saldos.
   A despesa total, que eu tinha orçado conservadoramente num milhar de libras esterlinas (por desconhecer a quanto está o camelo por estes dias), não tinha chegado – confessou a assassina minha Mãe – aos dez euros. Pelos cinco pares. Sim, porque três deles foram um euro e picos.
   Os de «camelo», é que tinham chegado perigosamente perto do Everest dos dois euros, dada a qualidade.
   De uma nota de dez euros, ainda deu para fazer umas comprinhas de lacticínios e trazer uma baguette. Assim agem os assassinos contemporâneos. Não precisam de venenos rebuscados e caros: basta-lhes o veneno do que se vende aos pobres. Para quê investir em arsénico se os próprios chinelos são feitos de sobras de asbestos?
   Foi uma segunda morte, admito. Que a minha mãe queria matar-me por já não ter quatro anos, já eu desconfiava. Mas nunca imaginei que o fizesse com uma moeda de dois euros e trocos para um iogurte.
   As pantufas assassinas foram para o caixote do lixo. «Cuidado», disse a minha Mãe assassina, não fosse abençoada pelo famoso sentido de humor inglês, «porque amanhã, quando acordares, poderás encontrá-los alinhadinhos e à espera de serem calçados, mesmo à beira da tua cama…»
   Juro que acreditei e tremi. Tentei cortá-los aos bocadinhos. São invulneráveis. Deitei-lhes gasolina Zippo e tentei ateá-los. Não arderam. São de um plástico tão plástico que o nosso mundo não os atinge. São pantufas assassinas, Terminators 381, ainda à espera de um filme; quanto menos de um antídoto.
   Mas seria estupidez, sermos distraídos pelos instrumentos do assassinato. O que importa reter é a identidade – eterna, imutável – da assassina.
   É aquela que «quer o nosso bem» acima de tudo. Nós é que precisamos começar a compreender, de uma vez por todas, que o nosso bem não passa obrigatoriamente por estarmos vivos…
   Já era a mesma coisa com Deus. Quem dispõe da vida, dispõe também da morte. Mas como – e quando – é que as mães aprenderam tal truque? Bem vistas as coisas, é bem possível que o velho Freud tenha sido o primeiro a saber esta desconfortante verdade. Ao relê-lo à luz das pantufas assassinas, tenho de dizer que passei a notar um tom extremamente aflito de que nunca antes me tinha dado conta…


in: "A Minha Andorinha", Miguel Esteves Cardoso